Nedismo em Dose Dupla: As duas faces do Danse Macabre de Suspiria (1977 e 2018)

Nedismo em Dose Dupla: As duas faces do Danse Macabre de Suspiria (1977 e 2018)

Ned
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Voltei, galerinha do mal! E desta vez, como diz o título, em dose dupla. Minha proposta com esse formato em especial é fazer uma análise e resenha de dois filmes ao mesmo tempo, a título de comparação. Não sei se repetirei esse experimento posteriormente, mas é algo que cabe para os filmes que irei avaliar, e vocês entenderão o porquê.



Enfim, os filmes em questão são os dois Suspiria, tanto o clássico dos anos 70 como o remake cultuado de 2018. O primeiro foi um filme único que não só marcou época como sua influência transcendeu para outros gêneros, ou seja, o remake tinha uma baita bagagem em mãos, principalmente devido à peculiaridade do original. Felizmente, perceberam que não se podia repetir os feitos do longa de Dario Argento, e partiram para uma outra abordagem quase igualmente interessante. 

Premissa básica de ambos os filmes: Suzy Bannion (ou Susie no remake) é uma jovem que viaja para a Alemanha para estudar numa academia prestigiada de dança, porém, por trás das cortinas um segredo sinistro assola o local. É a partir daí que a história de ambos os filmes se desenvolve, mas de maneiras bem distintas.

Farei agora um comparativo entre os dois longas, e a princípio o artigo não conterá spoilers severos (avisarei a partir de qual trecho terá spoilers).

Abordagens e influências:

Suspiria (1977): O longa original pertence (há controvérsias) ao gênero de suspense giallo, de raízes italianas, que aborda mistérios rondando assassinatos brutais e tramas mais policialescas, com uma boa dose de horror. Giallo significa "amarelo" em italiano, fazendo referência à cor que predominava nas capas de revistas pulp italianas da época. Os filmes gialli conceberam posteriormente alguns filhotes após o declínio do gênero, como o slasherSuspiria em questão pende mais pro sobrenatural e menos pro policialesco típico do giallo, o que ocasiona muitos debates entre os entusiastas do giallo sobre o pertencimento do filme ao gênero ou não, mesmo que ele claramente use convencionalidades típicas do mesmo.

Falando sobre a estética em si (um dos pontos mais memoráveis do longa, se não o mais memorável), Dario Argento, diretor do longa, usa e abusa de um destacado expressionismo por meio de cores primárias vibrantes e uma geometria e arte abstratas para elevar ao máximo a atmosfera onírica da obra. O método pelo qual atingiram essa psicodelia colorida berrante foi por meio do agora finado sistema Technicolor, tecnologia esta que foi muito importante no passado, e Suspiria é uma bela amostra do que essa saudosa tecnologia era capaz. O longa pega muita inspiração de outro clássico gialloSeis Mulheres para o Assassino (1975) de Mario Bava, que faz um uso intenso da cor vermelha, assim como o filme de Argento. O próprio sangue no filme tem uma tonalidade vermelha extremamente acentuada. Obviamente, as cores em si tem um significado (vermelho representa perigo, azul calmaria, etc etc.), e o filme inteligentemente mistura as cores em várias cenas, deixando tudo imprevisível e amedrontador.

Um banho de luzes coloridas. Não, isso não representa a bandeira bissexual.


Um rosa predominante. Destaque para uma silhueta sinistra por trás da cortina.


A geometria em si tem sua inspiração nas obras surreais de M. C. Esher, como podemos ver na  primeira imagem abaixo. Os sets e locações vão desde corredores labirínticos a imensos salões tomados por formas geométricas e afrescos surreais. Esses designs atípicos, somados ao colorido já dissertado (como por exemplo numa cena em que um show de luzes atravessa as vidraças, como uma balada demoníaca), nos submergem numa fantasia das mais diabólicas, ou como muitos dizem, um pesadelo filmado. O estilo é totalmente a substância de Suspiria. Por isso o filme é excelente.

Uma clara referência à obra de M. C. Esher em Suspiria, somada a um rosa vibrante

Um set design surreal

Indo para aspectos musicais, algo que se destaca logo de cara no primeiro segundo é a assombrosa música tema do filme, composta pela banda de rock progressivo Goblin, que já havia colaborado com Argento em Profondo Rosso. Pessoalmente, é uma das raras trilhas que ficaram marcadas a fogo na minha mente logo no primeiro momento que vi: o title card do filme, momento de silêncio, e então começam a soar sinos de melodia inquietantemente familiar, que depois de alguns segundos são acompanhados por sussurros sinistros que parecem estar invocando espíritos. A adição de sintetizadores, tambores indianos de tabla, bouzoki (instrumento de cordas grego)... Parafraseando um lema popular: é ouvir para crer.


Suspiria (2018): Décadas depois, finalmente sai o aguardado (com vários pés atrás) remake, dirigido por ninguém menos que Luca Guadagnino (mais conhecido pelo filme Me Chame Pelo Seu Nome), fazendo sua estreia no gênero terror. Quem viu o filme citado, entende que o estilo de Guadagnino é drasticamente diferente do de Argento, e quando saiu o primeiro trailer do filme, muitos questionaram as cores bem mais neutras dos cenários. Quando o filme estreou, as mudanças se revelaram ainda mais profundas, o que dividiu muita gente, com muitos amando e outros achando um trabalho bem aquém ao original. Na opinião do redator, foram essas as mudanças que tornaram o remake em algo especial e muito acima de vários remakes que se propõem a somente repetir o que fora realizado anteriormente com maior eficácia.

Sim, as cores estão bem mais tétricas nessa versão. A trilha de Thom Yorke (sim, o vocalista de Radiohead) é extremamente mais melancólica e suave que a de Goblin. E tudo isso serve à visão de Guadagnino. O filme tem como principal motor o movimento corporal, algo que super combina com a trama, que se passa numa escola de dança. Não sendo mais o balé tradicional do filme original, as danças do longa são bem mais arrojadas e elaboradas, além de ter todo um significado para a história. As danças foram inspiradas pela obra de várias dançarinas expressionistas, como Pina Bausch e mais destacadamente Mary Wigman. O resultado, aliado a uma edição sonora de ponta (que destaca cada movimento, pisada e suspiro), é hipnotizante, como podemos ver nessa pequena amostra abaixo (há cenas maiores e mais exemplares, mas a título de ser sem spoiler, melhor começar por essa):



Além do foco maior na expressividade corporal, há também a inclusão de não-tão-sutis paralelos políticos, dado o contexto no qual o filme se passa. Durante a década de 70, na Alemanha, um forte movimento terrorista e revolucionário de extrema esquerda estava assolando o país, sob a alcunha de Rote Armee Fraktion (RAF), Fração do Exército Vermelho em português. O filme aborda especificamente o sequestro de um Boeing 747 que ocorreu na vida real, além de outras atividades. Uma das personagens, interpretada por Chloë Grace Moretz, tem envolvimento com o grupo guerrilheiro responsável. O filme reflete a aura de mea culpa pós-Segunda Guerra que predominava na Alemanha, influenciada pelo Vergangenheitsbewältigungtermo que significa "lidar com o passado". O quanto essas subcamadas significam para o desenrolar do filme em si, vai de cada um, mas é uma nuance interessante.

ATENÇÃO: a partir de agora, o texto tratará de elementos com spoilers. Se quiser minhas resoluções sem spoiler, pule para a seção "Qual é o Melhor?". Não digam que não os avisei.

História e personagens:

No caso do original, Dario Argento é um fã declarado dos contos de fadas dos irmãos Grimm, desde a infância. E claro, ele usa essa influência peculiar em Suspiria. Não a toa, o filme é tido como um conto de fadas macabro (assim como vários contos de fadas na sua forma original, mas isso é outra história). Uma das maiores influências do filme tanto no uso de cores como na história foi Branca de Neve e os Sete Anões, da Walt Disney, o que reforça ainda mais a tese. A trama do filme pode facilmente ser resumida como a história de uma jovem ingênua que, ao adentrar  um local aparentemente inofensivo e amigável, se encontra na verdade num clã de bruxas sem perceber até o final o grau de bizarrice em que se enfiou, com ela desvendando os mistérios aos poucos enquanto vários assassinatos são cometidos ao seu redor. Por fim, o filme tem uma resolução bem simples (e até certo ponto cruel), onde ela sai viva do clã, deixando para trás as bruxas sendo queimadas após a líder, Helena Markos, ser morta. Final brutalmente feliz, que se encontra facilmente nas versões originais de vários contos de fadas famosos.



Aliás, Argento pretendia utilizar um elenco infantil no filme, porém, o estúdio que produziu o filme (comandado por seu pai), não aceitou a proposta. Então, Argento aumentou a faixa etária das personagens para no máximo 20 anos de idade, porém, mantendo a inocência juvenil e trejeitos infantis das personagens, conforme vemos no vídeo abaixo (essa é a melhor qualidade que o blogspot me permitiu trazer, se quiserem algo mais nítido, tá aqui). Obviamente, na minha concepção o filme teria sido ainda melhor se fosse protagonizado por crianças, mas Argento encontrou uma solução que deixa a estranheza ao redor da trama e personagens ainda mais acentuada. Os sets e locações gigantes também contribuem para destacar a pequeneza das personagens perante as ameaças. Tudo isso em favor de tornar Suspiria um conto de fadas moderno. Os melhores contos de fadas nunca são 100% alegres, pelo contrário, tem uma boa dose de horror.







O longa gerou uma trilogia, a Trilogia das Mães, composta por Suspiria (1977), A Mansão do Inferno (1980) e O Retorno da Maldição: A Mãe das Lágrimas (2007). Sem adentrar em muitos detalhes, o primeiro filme é focado na Mãe dos Suspiros (Mater Suspiriorum, ou Helena Markos), o segundo na Mãe das Trevas (Mater Tenebrarum), e o terceiro na Mãe das Lágrimas (Mater Lachrymarum). Esse conceito é baseado em Suspiria de Profundis, coletânea de poemas fantasiosos em forma de prosa, escritas por Thomas De Quincey. Mais especificamente, em Levana and Our Lady of Sorrows, que reimagina o mito romano da deusa Levana com ela tendo três companheiras, sendo estas as três mães de onde Argento tirou a ideia. Argento também consultou satanistas ao escrever o roteiro.

Suspiria de Profundis, de Thomas De Quincey

O remake, por sua vez, é dividido em seis partes e um epílogo, e tem um ritmo bem mais cadenciado graças as suas generosas 2 horas e 30 minutos de filme. Enquanto o original começa logo de cara com um assassinato brutal (e estilizado), o filme de Guadagnino demora um pouco mais para mostrar a brutalidade, mas quando mostra, vem com potência total. O longa aproveita a lore estabelecida na trilogia de Argento em seu favor, apresentando de uma vez os conceitos desenvolvidos ao longo da trilogia, porém com um óbvio foco na Mãe dos Suspiros. Adentrando com mais profundidade no elemento "dança", as danças do filme fazem parte dos feitiços das bruxas, como podemos ver na cena abaixo.



O filme conta com uma conclusão radicalmente diferente do original, com Susie descobrindo ser a verdadeira Mãe dos Suspiros e aceitando seu destino, ao invés da Suzy do original que mata a Mãe dos Suspiros e foge do clã de bruxas. No decorrer do longa, Susie também forma um vínculo curioso com Madame Blanc, e esta teme pela vida de Susie e mostra ser mais vulnerável. Susie, por sua vez, ao assumir sua verdadeira identidade, destrói todas as bruxas inimigas e liberta as cativas de sua dor, dando-as uma morte indolor, numa sequência incrível em que a Morte em pessoa explode as cabeças das bruxas inimigas logo após uma dança/ritual das mais sanguinolentas, tudo isso ao som de Unmade de Thom Yorke, conforme podemos ver aquiPor favor, ignorem as bugadas do vídeo, é o clipe de melhor qualidade que pude encontrar, além de que o blogspot não deixou inserir ele da maneira natural. Basicamente um fim de filme de terror da A24 melhor que muitos fins de filmes de terror da A24. Enfim, como podem ter notado, dá pra falar bem mais sobre o remake abordando ele com spoilers, dada a ousadia da abordagem de Guadagnino. 

Antes de irmos para as considerações finais, devo dar um destaque também para Tilda Swinton, que não só interpreta a instrutora Madame Blanc, como interpreta a própria Helena Markos e até mesmo um personagem masculino, o psiquiatra Jozef Klemperer, que é mais um elemento pelo qual o filme explora a culpa alemã no pós-Guerra, já que o personagem é um judeu sobrevivente do Holocausto. Antes de Swinton assumir ser a interprete de Klemperer, havia sido divulgado que o papel teria sido realizado por Lutsz Ebersdorf (que por sua vez, é um ator que não existe). Apenas uma amostra da capacidade de atuação de Swinton e sua versatilidade (bem como um excelente uso de maquiagem por trás da equipe do filme)


Os três papeis de Tilda Swinton

Qual é o melhor?: Enfim, dado o entusiasmo, vocês devem ter notado minha predileção ao longa original, de Argento. Não tem jeito, a unicidade e impacto onírico do Suspiria de 1977 pesa mais para mim que a abordagem mais melancólica (e ainda assim brutal) do Suspiria de 2018. Porém, isso não é demérito do remake de Guadagnino, que eu considero que realizou um remake realmente a altura. Ao invés de se preocupar em somente homenagear o original de maneira rasa e pouco criativa, Guadagnino propõe uma excelente abordagem alternativa para o Danse Macabre da história, ao mesmo tempo que dá uma aprofundada interessante em alguns temas e personagens. Se mais remakes fossem assim, Hollywood estaria num lugar bem melhor atualmente. 

Caso tenham visto ambos os filmes, comentem aí embaixo qual vocês preferem e o porquê. Caso não tenham visto nenhum dos dois, fica aí a recomendação, são ambos excelentes filmes de terror, um com uma abordagem mais extravagante e estilosa e outro com uma abordagem mais meditativa e brutal.

Saiba mais (conteúdo extra que não inclui em sua totalidade para deixar o artigo mais direto ao ponto):
Technicolor
Site oficial do M. C. Escher
Giallo
A trilha de Golbin (inglês)
Mary Wigman
Fração do Exército Vermelho (RAF)
Aquela palavra alemã difícil
Levana and Our Lady of Sorrows (video somente em inglês)

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